UM CONTO DE NATAL


Um Conto de Natal

Faltam dois dias para o Natal! Na rua, vitrines enfeitadas de verde e dourado, nas casas, guirlandas e pinheiros adornam as entradas e as salas! Quem ainda não comprou, pensa em ir às compras, e as crianças anseiam pelos seus presentes de Natal. A bela tradição natalina, ano após ano, se renova, é inegável os ânimos que se veem renascer nesta época.

Mas quem não ouviu no terminal rodoviário, no mercado, na fila do banco, ou mesmo em família, no almoço de domingo, um senhor de barba branca, ou uma senhora de cabelos tingidos, talvez a avó ou o avô, a lamentar a perda do tão sagrado espírito natalino?

Bem, eu já ouvi isso pelo menos três vezes na presente véspera natalina, e não pude deixar de refletir sobre o que aquelas pessoas falavam. O Natal, como sabemos, segundo o calendário cristão, é a celebração do nascimento do menino que veio ao mundo para ensinar a importância de sentimentos e ações tais quais o amor, a compaixão, a caridade e o perdão.

Mas não raro queremos árvores natalinas maiores do que nós mesmos em nossas salas, comprar ou receber os presentes de maior valor monetário, ter a mais apetitosa ceia... são tamanhas as nossas preocupações nesse curto espaço de tempo dividido entre trabalho, estudo, família, compras e preparativos para a data, que parar para refletir sobre o espírito natalino parece mesmo perda de tempo. Mas lhes garanto, não  é

Bem, é por isso que te convido para uma reflexão que não levará muito tempo, e garanto, será muito significativa. A história foi escrita no século XIX, mas poderia ter sido em pleno século XXI, dada a sua atemporalidade. Se trata da leitura do livro Um Conto de Natal, do escritor britânico Charles Dickens. Bem, os meus Natais não serão os mesmos depois desse livro, espero que o teu também não. O PET te deseja um belo Natal e boa leitura!



Charles Dickens
PRIMEIRA ESTROFE
O espectro de Marley
[…] Scrooge não havia apagado jamais o nome de seu antigo sócio. Depois de tantos anos, ainda se lia sobre a porta de sua casa comercial o nome de Scrooge & Marley, pois Scrooge & Marley continuava como a razão social da firma. As pessoas que não estavam bem a par das coisas chamavam Scrooge ora por Scrooge, ora por Marley, mas Scrooge atendia pelos dois nomes indiferentemente. Ah! Scrooge! Com que firmeza ele empunhava as rédeas dos negócios! Como este negociante sabia pegar e espremer, agarrar e tosquiar o cliente e, sobretudo, não irritar ninguém. Duro e cortante como uma pedra-de-fogo, da qual jamais aço algum conseguiu arrancar uma única centelha generosa, Scrooge mostrava-se taciturno, arredio e isolado como uma ostra.
Uma frieza interior enregelava-lhe os traços decrépitos, ressumbrava em seu nariz adunco, sulcava-lhe as faces, endurecia-lhe o andar, avermelhava-lhe os olhos, azulava-lhe os lábios finos e fazia sentir-se até mesmo em sua voz estridente. Uma espécie de neblina cobria-lhe a cabeça, os supercílios e o queixo pontiagudo. Esta frieza inóspita Scrooge a levava consigo aonde quer que fosse, de modo que seu escritório continuava gélido durante o mais intenso calor e não melhorava um grau nem mesmo pelo Natal. Quanto à temperatura exterior, pouca influência exercia sobre ele. Nenhum calor poderia aquecê-lo, assim como o mais rigoroso inverno não conseguiria transpassá-lo. Não havia rajada mais áspera que ele, tempestade de neve mais implacável, chuva fina mais torturante. O mau tempo não sabia por onde pegá-lo. Chuva e granizo, neve e frio levavam sobre ele apenas uma vantagem: todos se mostravam, uma vez ou outra, pródigos de seus benefícios; Scrooge, nunca!  […]
Um dia, um dos melhores do ano, e véspera de Natal, o velho Scrooge achava-se em seu escritório, a trabalhar. […] A porta de Scrooge estava aberta de modo a permitir-lhe observar seu empregado, que se achava copiando cartas no compartimento contíguo, lúgubre cubículo que mais parecia uma cisterna. O fogo de Scrooge era bem insignificante, mas o de seu empregado era tão miserável que parecia não passar de uma única brasa. E tornava-se impossível alimentá-lo, pois que Scrooge conservava junto de si a lata de carvão, e quando o pobre rapaz entrava, com a pá na mão, Scrooge declarava que era obrigado a dispensar os serviços de um homem tão gastador. Diante disso, o pobre homem, enrolando-se em seu cachecol branco, procurava aquecer-se na chama da lamparina, o que não conseguia, por não ser dotado de uma imaginação suficientemente viva.
– Bom Natal, meu tio, e que Deus o ajude! – exclamou uma voz jovial. Era a voz do sobrinho de Scrooge, cuja entrada no escritório fora tão imprevista, que este cordial cumprimento foi o único aviso com que o rapaz se fizera anunciar.
– Tolice! Tudo isso são bobagens!
O sobrinho de Scrooge, que havia caminhado apressadamente no meio da bruma gélida, tinha o rosto incendiado pela corrida. Seu rosto simpático estava vermelho, os olhos brilhavam, e, quando falava, seu hálito quente transformava-se numa nuvem de vapor.
– Natal, uma bobagem, meu tio? Parece que o senhor não refletiu bem!
– Ora! – disse Scrooge. Feliz Natal! Que direito tem você, diga lá, de estar alegre? Que razão tem você de estar alegre, pobre como é?
– E o senhor – respondeu alegre e zombeteiramente o sobrinho –, que direito tem de estar triste? Que razão tem o senhor de estar acabrunhado, rico como é?
Não encontrando no momento melhor resposta, Scrooge repetiu novamente:
– Tolice! Tudo isso são bobagens! […]
– Há muita coisa de que eu não soube tirar o proveito que poderia ter tirado, é certo, e o Natal é uma delas, – replicou o sobrinho. – Mas, pelo menos, estou certo de ter sempre considerado o Natal – fora a veneração que inspiram sua origem e seu caráter sagrados – como uma das mais felizes épocas do ano, como um tempo de bondade e perdão, de caridade e alegria; o único tempo, que eu saiba, no decorrer de todo um ano, em que todos, homens e mulheres, parecem irmanados no mesmo comum acordo para abrir seus corações fechados e reconhecer, naqueles que estão abaixo deles, verdadeiros companheiros no caminho da vida e não criaturas diferentes, votadas a outros destinos. Assim, pois, meu tio, embora o Natal não me tenha posto nos bolsos uma única moeda de ouro ou de prata, estou convencido de que ele me fez e me fará muito bem, e é por isso que eu repito: Deus abençoe o Natal!
O empregado não pôde deixar de aplaudir, de seu cubículo, o sobrinho de Scrooge, mas, logo a seguir, caindo em si e notando sua inoportuna intromissão, pôs-se a remexer as brasas vigorosamente, acabando por apagá-las. – Eu que o ouça mais uma vez, – disse Scrooge, – e você irá festejar o Natal no olho da rua. Quanto a você, meu amigo, continuou ele voltando-se para o sobrinho, você é de fato eloqüente; estou mesmo admirado de que ainda não tenha conseguido um lugar no Parlamento.
– Não se aborreça, tio, e venha almoçar conosco amanhã.
Scrooge respondeu mandando-o para o diabo, e o fez de cara a cara.
– Boa noite! – disse Scrooge.
– Eu não espero nada do senhor; eu nada lhe peço. Por que não sermos bons amigos?
– Boa noite! – disse Scrooge.
– Lamento de todo o coração vê-lo assim tão obstinado. Não temos, que eu saiba, nenhum motivo de ressentimento. Foi em homenagem ao Natal que vim até aqui, e no espírito de Natal quero ficar até o fim.
– Boa noite! – disse Scrooge.
– E feliz Ano Novo!
– Boa noite! – replicou Scrooge.
O sobrinho, entretanto, saiu do escritório sem uma palavra de desagrado. Na porta, deteve-se para apresentar as boas-festas ao empregado, que, mesmo tiritando como estava, se mostrou mais amistoso que seu patrão, pois que respondeu ao jovem com felicitações cheias de cordialidade.
– Outro predestinado! – resmungou Scrooge ao ouvi-lo. Imaginem meu empregado a falar de Feliz Natal com apenas quinze xelins por semana, tendo mulher e filhos!
O tal predestinado, tendo acompanhado o sobrinho de Scrooge até à porta, fez entrar dois cavalheiros de fisionomia simpática e aparência distinta, os quais penetraram no escritório, tendo à mão, além do chapéu, vários papéis e documentos.
Na presença de Scrooge, inclinaram-se.
– Scrooge & Marley, parece-nos? – disse um deles, consultando os apontamentos. É ao senhor Scrooge ou ao senhor Marley que temos a honra de falar?
– O senhor Marley faleceu há cerca de sete anos. Morreu nesta mesma noite, fará seguramente sete anos.
– Não temos a menor dúvida de que a generosidade do sócio sobrevivente seja igual à dele, – disse um dos cavalheiros, apresentando os papéis que o autorizavam a pedir. E não se enganava, pois que os dois sócios eram bem dignos um do outro.
Diante da inquietante palavra generosidade, Scrooge franziu o sobrolho, sacudiu a cabeça e devolveu os papéis.
– Nesta festiva época do ano, senhor Scrooge, – prosseguiu o cavalheiro, tomando uma pena –, parece ainda mais oportuno do que em nenhuma outra ocasião, arrecadar algum dinheiro para aliviar os pobres e os deserdados da sorte, que sofrem cruelmente os rigores do inverno. A muitos milhares de infelizes falta mesmo o estritamente necessário, e muitas outras centenas de milhares não conhecem o mais insignificante conforto. […]
– Desejo que me deixem em paz; já que os senhores querem saber, é isso que eu desejo. Eu não faço banquetes para mim próprio pelo Natal, vou agora dar banquete aos vagabundos! Já faço muito em dar minha contribuição às organizações de que falamos ainda há pouco, e elas não ficam barato! Aqueles que tiverem necessidade que recorram a elas.
– Muitos não o podem fazer, outros preferem a morte.
– Se preferem a morte, – disse Scrooge –, está ótimo! Que morram! Isso virá diminuir o excesso de população. De resto, queiram desculpar-me, porém não estou bem a par dessa questão.
– Mas o senhor poderá tomar parte nela.
– Isso não me interessa, – replicou Scrooge. Um homem já faz muito, quando se ocupa dos seus próprios negócios, sem interferir nos negócios alheios. Os meus já me tomam todo o tempo. Boa noite, senhores.
Vendo claramente que era inútil insistir, os cavalheiros retiraram-se. Scrooge, satisfeito consigo mesmo, pôs-se novamente a trabalhar, com radiante bom-humor.
Finalmente, chegou a hora de fechar o escritório.
Scrooge admitiu o fato, mas deixou seu tamborete bastante penalizado. O empregado, que em seu cubículo só aguardava este sinal, apressou-se em apagar o candeeiro e pôr o chapéu.
– Você há de certamente querer ficar livre todo o dia de amanhã? – disse-lhe Scrooge.
– Se isso não o aborrecer, senhor.
– Naturalmente que isso me atrapalha, – replicou Scrooge; e o que é mais, isso não é justo. Se eu descontasse meia coroa de seu ordenado, aposto que se sentiria prejudicado.
O empregado teve um sorriso pálido.
– E entretanto, – tornou Scrooge, você acha que não me prejudica, a mim, quando estou lhe pagando um dia para não fazer nada.
O empregado observou humildemente que isso acontecia apenas uma vez por ano.
– Bela desculpa para meter as unhas no bolso do seu patrão a cada 25 de dezembro! – disse Scrooge, abotoando o sobretudo até ao queixo. – Espero que seja mais pontual no dia seguinte pela manhã.
O empregado prometeu-o, e Scrooge saiu resmungando. O escritório foi fechado num abrir e fechar de olhos, e o empregado também saiu, todo enrolado em seu cachecol branco, cujas extremidades pendiam para além da jaqueta, pois que ele desconhecia o luxo de um sobretudo.

****

Scrooge fez uma magra refeição na sombria espelunca em que costumava comer. Quando acabou de percorrer os jornais e de tornar a observar sua caderneta do banco, entrou em casa para deitar-se. […]
Isto posto, expliquem-me, se puderem, como pôde acontecer que Scrooge, ao meter a chave na fechadura, viu subitamente diante dele, e sem prévia transforma ção, não uma argola de aldrava, mas o rosto de Marley! Sim, o rosto de Marley. Aquele rosto não estava, como o resto do pátio, mergulhado nas trevas impenetráveis, mas aureolado de um estranho clarão fosforescente. Sua expressão não era nem ameaçadora nem bravia, e olhava para Scrooge como Marley costumava olhá-lo, com os óculos sobre a testa de espectro. Os cabelos se lhe agitavam de modo estranho, levantados, parecia, por um sopro ou uma corrente de ar quente; e seus olhos, embora bem abertos, estavam perfeitamente imóveis. 
A aparição, com aquela tez lívida e aquele olhar fixo, era horrível de se ver; entretanto, o horror que ela inspirava não procedia propriamente da expressão dos seus traços, mas de uma influência exterior, que se exercia de fora e como que a despeito dela mesma. Mas quando, vencida a primeira perturbação, Scrooge examinou fixamente o estranho fenômeno, já não viu, de repente, nada mais que o simples anel da aldrava. Dizer que ele não se amedrontou e não sentiu interiormente uma impressão extraordinária jamais experimentada até então, seria falso. Não obstante, deitou a mão sobre a chave, que havia deixado cair, fê-la voltar-se com decisão na fechadura, penetrou no vestíbulo e acendeu a vela.
Para dizer verdade, Scrooge teve um momento de hesitação antes de fechar a porta, e começou por examiná-la prudentemente pela parte de trás, como se receasse ver surgir no vestíbulo a ponta da cabeleira de Marley. Mas não havia nada naquele lado, exceto os parafusos e as porcas que fixavam a aldrava. Depois de tal vistoria, Scrooge murmurou: “Ora! Tolices!” e tornou a fechar a porta bruscamente. Completamente tranqüilizado, Scrooge fechou a porta, dando a primeira volta à chave, depois a segunda volta, o
que não costumava fazer. Posto assim ao abrigo de surpresas, tirou a gravata, enfiou o roupão, calçou as chinelas, pôs o boné de noite e sentou-se diante do fogo para beber sua xícara de remédio. […]
 Como inclinasse a cabeça para trás, seus olhos pousaram, casualmente, sobre uma campainha já fora de uso, que pendia da parede e que se comunicava, não se sabe por quê, com uma das mansardas da casa. Scrooge ficou tomado do mais vivo espanto, e ao mesmo tempo de um indescritível e inexplicável pavor, quando viu mover-se o cordão da campainha, que começou a balançar-se primeiro vagarosamente, quase imperceptível, e, em seguida, violentamente, ao mesmo tempo em que todas as campainhas da casa entraram a soar ruidosamente. Este tumulto durou aproximadamente meio minuto, quando muito um minuto, mas que pareceu interminável a Scrooge. E as campainhas, do mesmo modo como começaram, também silenciaram ao mesmo tempo. A este alarido infernal, sucedeu um barulho metálico, oriundo das profundezas da casa, como se alguém, no interior da adega, arrastasse pesadas correntes. Então, Scrooge lembrou-se de ter ouvido dizer que, nas casas malassombradas, os duendes arrastam sempre grossas cadeias atrás de si.
A porta da adega abriu-se violentamente, e o estrépito fez-se ouvir mais vivo no rés-do-chão, depois na escada, e, aproximando-se cada vez mais, dirigiu-se em linha reta para a porta do apartamento.
– Idiotices!... – disse Scrooge. Não acredito nisso, não!
Mas imediatamente mudou de cor, quando, sem deter-se um só instante, o misterioso visitante atravessou a porta maciça e apresentou-se diante dele.
A sua entrada, o fogo bruxuleante lançou uma derradeira labareda, que pareceu gritar: “Eu o reconheço: é o espectro
de Marley! E apagou-se.[…]
– Misericórdia! – exclamou ele. Ó pavorosa aparição, por que me vem atormentar?
– Miserável criatura, tão apegada aos bens da terra! Acreditas em mim, agora?
– Sim, – balbuciou Scrooge –, creio! Sou obrigado a crer! Mas por que vagam os espíritos sobre a terra, e por
que me vêm eles perturbar?
– Deus exige de cada homem, – respondeu o espectro –, que o espírito que o anima se consubstancie com as almas de seus semelhantes no decurso de sua longa viagem pela vida. Assim, pois, aquele que viver só para si durante a existência, é condenado a viver errante pelo espaço após a morte – ó miserável destino! – para assistir, já agora impotente, a todas as coisas em que, durante a vida, poderia ter tomado parte para sua felicidade e a de seu próximo. – Jacob, – disse ele com voz suplicante, meu velho Jacob Marley! Diga-me ainda alguma coisa! Dê-me um pouco de conforto, um pouco de esperança!
– Já não posso confortar ninguém, – respondeu o fantasma. O consolo e a esperança vêm de outra fonte, Ebenezer Scrooge. São trazidos por outros mensageiros e para outros homens, não para ti. Além do mais, não posso conversar tanto quanto eu desejara. O que me é permitido dizer-te ainda é pouca coisa, pois não tenho permissão para descansar, nem para deter-me, nem para demorarme onde quer que seja. Noutros tempos, meu espírito não saía jamais do nosso escritório, estás me compreendendo? Nunca, durante minha vida, meu espírito se resolveu a afastarse dos estreitos limites do nosso covil de negociatas. Eis por que tenho diante de mim tantas e tão penosas viagens.
Scrooge tinha o hábito de meter as mãos nos bolsos, quando refletia; e foi assim que, enquanto meditava sobre as últimas palavras do fantasma, dirigiu-lhe a palavra, mas sem erguer os olhos e sempre ajoelhado.
– É preciso que você tenha sido bem lento, Jacob! – observou ele com voz onde transparecia o homem de negó-
cios ao mesmo tempo humilde e obsequioso.
– Bem lento! – repetiu o espectro.
– Você morreu há sete anos, – disse Scrooge pensativo, e todo esse tempo perambulando?
– Todo o tempo, – disse o espectro; sem repouso e sem trégua, com a eterna tortura do remorso.
– Entretanto, Jacob, – balbuciou Scrooge, que começava a tomar para si mesmo as palavras do espectro –, você foi sempre um excelente homem de negócios.
– Os negócios! – gemeu o fantasma retorcendo as mãos. – A humanidade, o bem comum, a indulgência, a caridade,
a misericórdia, a benevolência, esses deviam ter sido os meus negócios!
O espectro ergueu suas cadeias com a extremidade do braço, como se visse nelas a causa do seu inútil desespero, deixando-a em seguida cair pesadamente ao chão.
– Quando chega esta época do ano, – prosseguiu ele –, meus sofrimentos redobram. Por que fui eu tão insensato para ter passado no meio da multidão dos meus semelhantes, sempre com os olhos voltados para o chão, sem jamais erguê-los para aquela bendita estrela, que um dia conduziu os magos para uma pobre choupana? Não haveria outras pobres choupanas, aonde a luz me pudesse ter guiado a mim também?
Scrooge tremia como vara verde, ouvindo o espectro falar daquele modo.
– Ouve-me, – gritou o fantasma. Meus minutos são contados. […]
– Mas não é esse o meu maior suplício, – continuou o espectro. – Vim esta noite para avisar-te de que ainda te
resta uma esperança, uma oportunidade de escapar a um destino semelhante ao meu. É uma esperança, uma oportunidade
que eu venho trazer-te, Ebenezer.
– Oh, mil vezes obrigado! – exclamou Scrooge. – Você foi sempre um bom amigo para mim.
– Vais ser visitado por mais três espíritos, – continuou o fantasma.
O semblante de Scrooge tornou-se tão lívido como o do próprio espectro.
– É essa, então, a esperança ou a oportunidade de que você me falou, Jacob? – perguntou ele com a voz débil.
– Exatamente.
– Eu... Eu preferia que isso não acontecesse.
– Se não receberes a visita deles, podes perder a esperança de escapar a um destino igual ao meu. Aguarda a visita
do primeiro espírito amanhã ao bater da uma hora.
– Não seria melhor que viessem todos juntos, para acabar mais depressa com isso? – sugeriu Scrooge.
– O segundo aparecerá na noite seguinte, à mesma hora, e o terceiro na outra noite, ao bater a última badalada
da meia-noite. Não esperes tornar a ver-me, e não te esqueças, no teu próprio interesse, de conservar a lembrança
de tudo que se passou entre nós.

****
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SEGUNDA ESTROFE
O primeiro dos três espíritos

[…] Era uma estranha aparição. A primeira vista, ter-se-ia a impressão de ver-se uma criança, mas, a um exame mais minucioso, verificava-se
que seria antes um velho, um ancião visto através de uma atmosfera sobrenatural, que lhe dava uma aparência longínqua e o reduzia às proporções de uma criança. Seus cabelos, brancos como os de um homem de idade, caíam-lhe pelos ombros; seu rosto, entretanto, não apresentava a menor ruga, e sua tez era de uma deliciosa frescura. Os braços, longos e musculosos, bem como suas mãos robustas, denunciavam extrema força. As pernas e os pés, finamente modelados, estavam nus como os membros superiores. […]
– Sois vós o espírito, cuja visita me foi anunciada? – perguntou Scrooge.
– Sim.
Aquela voz era doce e agradável, mas singularmente fraca, como se, em vez de estar tão próxima, viesse de
muito longe.
– Então, quem sois vós? – perguntou Scrooge.
– Sou o fantasma dos Natais passados.
– Passados desde quando? – interrogou Scrooge, observando o seu talhe delgado.
– Somente os do teu passado.
Scrooge sentia um ardente desejo de vê-lo coberto com o chapéu que trazia à mão; se alguém lhe perguntasse qual a razão disto, jamais teria sabido responder.
– Como? – exclamou o fantasma. – Queres tão depressa extinguir, com as tuas mãos profanas, a fulgurante luz que resplandece em mim? Não te basta seres daqueles cujas paixões me teceram este chapéu e que me forçam tantas e tantas vezes a enterrá-lo até aos olhos?
Scrooge declarou respeitosamente não ter tido a menor intenção de ofender o espírito e afirmou não lembrar-se jamais de o ter forçado, em toda a sua vida, a “usar” aquele chapéu. Em seguida, atreveu-se a perguntar-lhe o que o trazia ali.
– Tua felicidade, – respondeu a aparição.
Scrooge declarou-se profundamente agradecido, mas não deixou de pensar que uma noite de repouso teria concorrido mais eficazmente para este resultado. O espírito pareceu ler seu pensamento, pois no mesmo instante falou:
– Tua salvação, se preferes. Ouve-me!
Assim falando, estendeu a mão para Scrooge e tomou-o levemente pelo braço.
– Levanta-te, e vem comigo.
[…]
Ditas estas palavras, ambos passaram através da parede e acharam-se logo numa estrada orlada de campos. A
cidade havia-se evanescido, não restando dela um único traço; do mesmo modo, haviam desaparecido a noite e o
nevoeiro, fazendo agora um tempo hibernal claro e frio, com a terra coberta pela neve.
– Bondade divina! – exclamou Scrooge juntando as mãos. Foi aqui que fui criado! Aqui foi que passei a minha
infância!
– Reconheces o caminho? – perguntou o espírito.
– Oh, se o reconheço! – respondeu Scrooge com emoção; – poderia andar por ele de olhos fechados!
– É estranho que o tenhas esquecido durante tantos anos, – observou o espírito. – Vamos adiante.
Ambos prosseguiram, e Scrooge ia reconhecendo à cada casa, cada árvore, cada poste. Logo a seguir, apareceu
um pequeno povoado, com sua igrejinha, sua ponte e o rio sinuoso. Avistaram, então, na entrada, vários rapazes
montados em hirsutos pôneis, e que se comunicavam alegremente com outros jovens montados em carriolas camponesas.

Toda esta juventude transbordava de vida e de entusiasmo, e suas vozes enchiam o campo de uma música tão
alegre que o ar cristalino parecia todo entrar em vibração.
– São apenas sombras do passado, – disse o espírito; – elas não podem perceber a nossa presença. […]
O espírito deteve-se diante da porta de uma loja e perguntou a Scrooge se a reconhecia.
–Oh, se a reconheço! Não foi aqui que comecei o meu aprendizado?
Ambos entraram.
Um ancião, com uma peruca na cabeça, estava sentado em uma carteira tão alta, que mais umas polegadas e sua
cabeça teria tocado o teto.
À vista dele, Scrooge exclamou emocionado:
– Meu Deus! Mas é o velho Fezziwig! Louvado seja Deus! É o velho Fezziwig ressuscitado!
O velho Fezziwig pousou a caneta e olhou para o relógio, que marcava sete horas. […]
– Vamos, adiante! – berrou o velho Fezziwig, pulando de sua escrivaninha com surpreendente agilidade. – Vamos,
criançada! Desocupem tudo, arranjem o maior espaço possível!
Arranjar espaço? Mas eles seriam capazes de desmontar tudo sob as ordens animadoras do velho Fezziwig!
Em menos de um minuto, tudo estava pronto. Tudo que podia ser transportado foi tirado e levado para outras
partes como se para desaparecer de uma vez da face da terra. O soalho foi varrido e encerado, os candelabros espanados,
a lareira reabastecida.
Dentro em breve, o armazém estava transformado em um belo salão de baile, tão confortável e bem iluminado quanto se poderia desejar numa noite de inverno.
[…]
Obtido este resultado, o velho Fezziwig exclamou: “Está ótimo!” e bateu palmas para fazer parar a dança[…] Foi então que o velho Fezziwig e esposa começaram pessoalmente a conduzir o baile: e posso afirmar que não era fácil dirigir vinte e três ou vinte e quatro pares de bailadores, e que bailadores! Era gente que sabia dançar de fato e não simplesmente arrastar os pés. Mas, mesmo que fossem duas, três ou mesmo quatro vezes mais, o velho Charles Dickens 14 Fezziwig seria capaz de agüentar a parada, do mesmo modo que a senhora Fezziwig, sua digna companheira em toda a extensão da palavra.
[…]
Enquanto o baile durou, Scrooge comportou-se como um homem que tivesse sido transportado para a sua mocidade. Tomava parte de alma e coração na cena, com o Scrooge de outros tempos. Ele tudo reconhecia, lembrava-se de tudo, divertia-se com tudo e manifestava a mais estranha emoção. Foi somente quando os rostos alegres de Dick e do outro Scrooge se desviaram deles, que ele se lembrou da presença do espírito. Notou, então, que este o observava com atenção e que a claridade do ápice de sua cabeça brilhava com viva intensidade.
– Não vejo nada de extraordinário para inspirar a estes idiotas tanto reconhecimento, – disse o espírito.
– De fato, – disse Scrooge.
O espírito fez-lhe sinal com o dedo para escutar os dois aprendizes que cantavam os louvores de Feziwig. Depois,
continuou
– Como? Aí está uma coisa engraçada! Este homem não despendeu senão algumas libras do seu dinheiro terrestre.
Isso é razão para tanto elogio?
– Não se trata disso, – protestou Scrooge já esquentado por esta observação e falando, sem que o percebesse, como teria falado o Scrooge de outrora. Não se trata disso, Espírito. Fezziwig tem o poder de nos fazer felizes ou infelizes; pode fazer que o nosso trabalho seja um prazer ou uma insuportável tarefa. Que este poder se manifeste por palavras, por gestos ou olhares, pouco importa; a felicidade que espalha em torno dele é tão grande como se
custasse uma fortuna. Scrooge sentiu pesar sobre ele o olhar do espírito, e calou-se.
[…]
Scrooge sentiu que as forças o abandonavam, ao mesmo tempo que o tomava uma incoercível vontade de dormir. Entretanto, tinha consciência de que se achava novamente em seu quarto. Sua mão fez um último esforço para enterrar mais o chapéu, mas o pulso afrouxou, e mal teve tempo para ganhar o leito, cambaleando, antes de mergulhar num sono profundo.

****

TERCEIRA ESTROFE
O segundo dos três espíritos

Despertado em meio de um barulhento ressonar, Scrooge sentou-se na cama para coordenar as idéias, sem precisar ser avisado de que o relógio ia bater uma hora. Tinha consciência de que a lucidez de espírito lhe voltava justamente no instante em que devia travar conhecimento com o segundo mensageiro anunciado por Jacob Marley. Mas quando começava a perguntar a si mesmo qual seria a cortina do leito que ia ser movida desta vez pelo novo espírito, sentiu um arrepio tão desagradável, que resolveu puxar todas as cortinas com as próprias mãos. Feito isto, deitou-se de novo, mas sem cessar a rigorosa vigilância em redor do leito, pois queria fazer frente ao espírito desde o momento de sua aparição, e não ser tomado de surpresa, o que lhe inutilizaria todos os seus recursos. […]
O terceiro espírito era dotado de uma extraordinária faculdade: apesar de seu talhe gigantesco, estava sempre perfeitamente à vontade, onde quer que fosse; mesmo sob o mais baixo teto, andava com a mesma graça e naturalidade como se estivesse no mais luxuoso palácio. Ou fosse para fazer alarde deste poder, ou fosse levado pelo seu coração generoso, compassivo pelos humildes,
o certo é que foi para a casa do seu empregado que o espírito arrastou Scrooge, sempre agarrado ao seu manto. Na soleira da porta o espírito sorriu e deteve-se para abençoar a casa de Bob Cratchit, levantando o seu facho. Então, apareceu a senhora Cratchit, esposa de Bob, vestida muito modestamente com um vestido já surrado mas que ela havia enfeitado garridamente com umas fitas baratas, que custam apenas alguns centavos e fazem tanta vista.
[…]
Finalmente, colocados todos em seus respectivos lugares, recitou-se a oração de antes das refeições. Seguiu-se, então, um silêncio impressionante, enquanto a senhora Cratchit, tomando lentamente a faca de trinchar, se preparava para cortar a ave. Mal, porém, a senhora Cratchit enterrou a faca nas laterais do pato, após tão mal contida ansiedade, um “hurra” de contentamento estrugiu por toda a sala. O próprio Tinzinho, excitado pelos dois pequeninos Cratchits, bateu na mesa com o cabo da faca e repetiu um “hurra”.
Nunca, em tempo algum, se tinha visto um pato semelhante. Bob declarou que jamais se fizera um pato assado igual àquele; foram objeto de comentários o seu preço, a qualidade, o tamanho e o delicioso gosto. Ainda mais, com o molho de maçãs e o pirão de batatas, este pato representava um lauto almoço para toda a família, “e até mesmo sobrou”, observou a senhora Cratchit com satisfação, olhando alguns ossos relegados no prato. 
Entretanto, todos comeram à vontade, inclusive os pequenos Cratchits, que tinham a cara lambuzada de pato e de molho até aos olhos. E agora, enquanto Belinda muda os pratos, a senhora Cratchit sai sozinha da sala, para esconder sua grande emoção, e vai buscar o pudim. Oh, que maravilhoso pudim! Bob Cratchit declarou, solenemente, que era a mais perfeita obra-prima que a senhora Cratchit executou desde que casaram. A senhora Cratchit, agora com o espírito liberto do receio de errar, confessava ter tido alguma dúvida sobre a quantidade de farinha empregada.
Cada um teve alguma coisa a dizer sobre o pudim; mas o que ninguém disse, e talvez nem mesmo se atrevesse a pensar, é que o referido pudim era demasiado pequeno para tão grande família.
Em verdade, isso teria sido uma espécie de blasfêmia, e quaisquer dos Cratchits teria corado de vergonha à simples idéia de fazer tal alusão.
Finalmente, o almoço terminou. A mesa foi levantada, o chão varrido e a lareira reabastecida.
Em seguida, após o elogio feito à bebida que fora distribuída entre todos os presentes, foram servidas, à mesa, maçãs e laranjas, ao mesmo tempo que se atiravam à cinza punhados de castanhas. Depois, toda a família Cratchit se reuniu diante do fogo – ao que Bob Cratchit chamava “fazer roda” em torno do fogo. Ao lado de Bob tinha-se juntado tudo o que havia na casa de finos cristais, isto é, dois copos de pé e uma xícara sem asa. Mas, pouco importava: não continham tais vasos o licor saboroso, do mesmo modo como se estivesse em finos vasos de ouro?
Bob distribuiu licor a todos, com ar radioso, enquanto as castanhas pulavam na cinza e rachavam com estalos
intermitentes. Em seguida, Bob Cratchit levantou este brinde:
– A todos vocês, meus amigos, um felicíssimo Natal! Que Deus nos abençoe a todos!
Toda a família respondeu alegremente.
– Que Deus abençoe a cada um de nós! – disse Tinzinho, o último de todos.
Tinzinho estava sentado ao lado do pai, em seu banquinho, e Bob tinha entre as suas as magras mãozinhas do filho
querido, estreitando-o contra si, amorosamente, como se receasse que alguém lhe viesse arrebatá-lo.
– Espírito, – falou Scrooge com um interesse que jamais sentira, – dizei-me se Tinzinho viverá muito tempo.
– Vejo uma cadeira vazia neste pobre lar, e umas muletinhas sem dono, conservadas como uma dolorosa lembrança.
Se estas sombras não forem modificadas no futuro, esta criança morrerá.
– Não, não, meu bom espírito! – exclamou Scrooge, – dizei-me que o pequeno será poupado.
– Se os destinos permanecerem estáveis nestas imagens, – respondeu o espírito, nenhum membro de minha raça o tornará a encontrar aqui. E por que deplorá-lo? Se é seu destino morrer, que morra já! Isso virá diminuir o excesso de população...
Ouvindo o espírito repetir suas próprias palavras, Scrooge baixou a cabeça, tomado de sentimento e de remorso.
– Homem, – disse o espírito –, – se possuis um coração humano e não um coração de pedra, deixa de dizer tolices até que tenhas descoberto o que é excesso de população e onde existe. A ti é que cabe decidir quais são, entre
os homens, aqueles que devem viver e aqueles que devem morrer? Pode muito bem ser que aos olhos de Deus sejas tu muito menos digno de viver do que milhares de seres semelhantes ao filho deste pobre homem. Justos céus! Ouvir o inseto pousado sobre a folha dizer que acha muito numerosos os seus irmãos famintos que se debatem na poeira!

Scrooge ouvia, de cabeça baixa, a invectiva do fantasma e olhava para o chão a tremer.
Subitamente, ergueu os olhos ao ouvir pronunciar seu nome.
– À saúde do senhor Scrooge! – dizia Bob. À saúde de meu patrão, graças ao qual estamos hoje em festa.
– Bonito patrão, realmente, – exclamou a senhora Cratchit corando. Eu gostaria que estivesse aqui! Eu lhe faria uma bela saudação a meu modo...
– Minha querida amiga... – disse Bob. As crianças... o dia de Natal...
– É preciso, de fato, que seja dia de Natal, – replicou a mulher, para que se beba à saúde de um homem tão detestável, ladrão, cruel e sem coração como o senhor Scrooge. Você bem sabe quem ele é, Bob! Você o sabe melhor
que ninguém, meu pobre amigo!
– Querida... protestou Bob com doçura. É dia de Natal! . . . Canção de Natal 21
– Se eu beber à saúde dele; será só por você e por ser dia de Natal, mas não por ele mesmo. Assim pois, longa vida ao senhor Scrooge! Bom Natal e feliz Ano Novo! É isso, segundo penso, que o fará feliz e alegre!... As crianças brindaram, depois dela, à saúde de Scrooge; era a primeira coisa, naquela noite, que faziam de má vontade. O último que bebeu foi Tinzinho, mas sem entusiasmo. Scrooge era o pavor da família Cratchit. A simples menção de seu nome lançou sobre a reunião familiar uma sombra que durou vários minutos. Quando o terror se dissipou, todos, aliviados por terem liquidado o assunto antipático de Scrooge, ficaram dez
vezes mais alegres que antes. Quando suas imagens empalideceram, ainda mais alegres sob as gotículas brilhantes do facho com que o espírito os espargia, à guisa de despedida, Scrooge continuava com os olhos pousados sobre elas, especialmente sobre Tinzinho,
até que se evanescessem de todo.

****

[…]De súbito, sentiu-se extremamente surpreendido ao ouvir perto de si uma sonora gargalhada, mas ainda mais surpreendido ficou quando viu que tal gargalhada era de seu sobrinho, e que ele próprio se encontrava na sala clara, tépida e alegre, sempre em companhia do espírito. Este contemplava o sobrinho de Scrooge com uma expressão cheia de simpatia e benevolência.
– Ah! ah! ah! – ria o sobrinho de Scrooge. Ah! ah! ali! Tao verdade como eu estar aqui presente, – dizia o sobrinho de Scrooge, ter-me dito ele que o Natal é uma tolice, e parecia dizê-lo com convicção.
– Isso não deixa de ser ainda mais vergonhoso para ele, Fred! – declarou a sobrinha de Scrooge com ar revoltado. […]
– É um velho manhoso, certamente, – tornou o sobrinho, e bem pouco amável; mas seus defeitos terão seu respectivo castigo, e não serei eu quem lhe venha atirar a primeira pedra.
– Ele é riquíssimo, não é verdade? – insinuou a sobrinha. Pelo menos, foi o que você sempre me disse.
– Que importa a sua fortuna, querida, – respondeu o marido, uma vez que ela não lhe serve para nada? Não se
utiliza dela para praticar o bem, não tira dela nenhum proveito para si mesmo, nem mesmo tem a satisfação de pensar
– ah! ah! ah! – que um dia nos fez o menor benefício com o seu dinheiro.
– Pois bem: eu não quero aturá-lo! – declarou a sobrinha de Scrooge. E suas irmãs, e todas as damas presentes
foram da mesma opinião.
– Eu já sou menos severo que vocês, – disse o sobrinho; eu lamento que ele possua um caráter assim, mas sou
incapaz de querer-lhe mal por isso. Quem sofre as conseqüências do seu humor atrabiliário não é ele? Já que se lhe meteu na cabeça querer detestarmos e recusar nosso convite, qual é o resultado? Talvez não perca um famoso jantar...
– Ora esta! Eu acho que ele perdeu um ótimo jantar! – interrompeu sua esposa, e todos fizeram coro.
É necessário convir em que eles eram bons juízes, pois que estavam terminando o jantar. A sobremesa foi servida, e todos os convidados se haviam agrupado em torno do fogo, à claridade do lume. […] 
O relógio bateu as doze badaladas. Scrooge procurou o espírito com os olhos e já não o viu mais. Quando acabou de bater a última badalada, Scrooge lembrou-se da predição de Jacob Marley, e, erguendo os olhos, avistou uma sombra escura inteiramente velada, que avançava para ele, deslizando como a bruma pela superfície
do solo.

****

QUARTA ESTROFE

O último dos três espíritos
Lentamente, no meio de um profundo silêncio, o fantasma aproximou-se. Quando chegou perto de Scrooge, este sentiu que as pernas se lhe dobravam, pois o espírito parecia espalhar em torno de si uma atmosfera de mistério e tristeza. Estava envolto num espesso manto negro, que lhe ocultava a cabeça, o rosto e todas as formas do corpo, não deixando visível senão uma das mãos.
Sem esta mão, teria sido difícil distinguir, dentro da noite, esta forma sombria, quase identificada com a funda escuridão do ambiente.
De perto, Scrooge notou que o fantasma tinha uma estatura imponente, e que sua misteriosa presença lhe inspirava um sagrado terror. Nada mais pôde saber, porque o espírito conservava-se imóvel e silencioso.
– Estarei em presença do espírito dos Natais futuros? – perguntou Scrooge.
O espírito não respondeu, mas apontou o caminho com a mão.
– Ireis mostrar-me coisas que ainda não aconteceram, mas que estão para acontecer, não é verdade, Espírito?
A parte superior do manto moveu-se por um instante, como se o espírito inclinasse a cabeça em sinal de assentimento.
Foi essa a sua única resposta. […]
Estava agora à cabeceira de uma cama, uma cama sem cortinas, sobre a qual jazia, envolto num pano rasgado, uma forma cuja muda imobilidade era um lúgubre libelo contra a natureza. O quarto estava escuro, bastante escuro para que se lhe pudessem distinguir os detalhes, embora Scrooge olhasse para todos os lados, ansioso por descobrir aquilo que tal escuridão envolvia.
Uma pálida claridade vinda do exterior incidiu sobre o leito onde, pilhado, roubado, sem ninguém que o velasse, sem um amigo para chorá-lo, no meio do mais absoluto abandono, jazia o corpo deste homem.
Scrooge olhou para o fantasma, e viu que a mão apontava para a cabeça do morto. O lençol que a envolvia estava colocado de tal maneira que bastava levantar-lhe uma das pontas para descobrir o rosto do defunto.
Scrooge pensou em fazê-lo, mas, ao tentá-lo, verificou que para realizar este facílimo gesto se achava tão impotente quanto para despedir o espectro que continuava de pé a seu lado. E o morto jazia abandonado na enormidade daquela casa vazia, sem um homem, uma mulher ou uma criança que recordasse com mágoa alguma ação generosa sua. A porta miava um gato e debaixo do fogão ouvia-se um rumor de ratos. O que “eles’ procuravam naquela casa de morte, Scrooge não ousou pensar.
– Espírito, – disse ele –, este lugar é pavoroso. Os ensinamentos que acabo de aprender aqui, jamais os esquecerei,
eu vos juro. Por piedade, afastemo-nos daqui!
Mas o espírito continuava a apontar a cabeça do morto com o seu inexorável indicador.
– Eu vos compreendo, – disse Scrooge –, e desejaria obedecer-vos, se pudesse, mas não tenho forças para tanto,
Espírito! Espírito não tenho forças... […]
O espírito pareceu encará-lo novamente.
Movido pela angústia, Scrooge continuou:
– Se houver em toda a cidade de Londres uma só pessoa a quem a morte deste homem tenha causado qualquer
emoção, mostrai-ma, Espírito, eu vos suplico. O fantasma desdobrou diante dos olhos de Scrooge o seu sombrio manto como se fosse uma asa, e em seguida, afastando-o, fez aparecer diante dele uma sala fartamente iluminada pela luz de um claro dia, e, nela, uma mãe de família com os seus filhos.
A mulher parecia esperar alguém, tomada da mais viva ansiedade, estremecendo ao menor ruído, indo de um lado
para outro, olhando pela janela, consultando o relógio, tentando em vão recomeçar seu trabalho e enervando-se
com o barulho que faziam as crianças ao brincar.
Finalmente soou o toque da campainha tão ansiosamente esperado. Ela precipitou-se para a porta, a fim de receber o marido, rapaz ainda moço, mas cuja fisionomia apresentava os sinais da inquietude e das preocupações. O jovem tinha, neste momento, uma singular expressão, onde se lia uma espécie de alegria entremeada de embaraço, uma alegria da qual se envergonhava e que procurava reprimir. Quando se sentou à mesa, para o almoço requentado, que a esposa lhe guardara, e esta lhe perguntou, timidamente,
quais eram as notícias – o que só fez depois de longo silêncio –, o rapaz pareceu embaraçado para responder.
– São boas ou más? – perguntou ela para ajudá-lo.
– Más, – respondeu ele.
– Então, estamos arruinados?
– Não, Carolina, ainda há esperança.
– Será que “ele” vai apiedar-se? – disse ela hesitante. Se esse milagre se realizar, já não haverá razão para a gente
desesperar na vida.
– Ele não pode mais apiedar-se, porque já morreu.
Era uma senhora meiga e paciente, a julgar pela expressão de seu rosto, entretanto, seu primeiro impulso foi juntar
as mãos e dar graças a Deus.
Imediatamente, porém, arrependeu-se e manifestou-se penalizada por ter assim procedido, mas era a primeira
manifestação que lhe havia brotado da alma espontaneamente.
– O que me havia dito aquela mulher meio embriagada, de quem te falei ontem à noite, quando pedi licença para
vê-lo, a fim de obter dele a espera de pelo menos mais uma semana, não era pretexto para não me deixar entrar,
mas a pura realidade: não somente ele estava enfermo, mas mesmo agonizante.
– A quem teria passado a nossa dívida?
– Não sei. Mas até que a situação esteja regularizada, terei conseguido o dinheiro necessário. E mesmo que não
nos fosse possível pagar de uma só vez, seria muita falta de sorte se encontrássemos em seu herdeiro um credor tão
impiedoso como ele. Esta noite, Carolina, podemos dormir tranqüilamente.
Sim, isso era natural, pois os seus corações estavam mais aliviados. As crianças, agrupadas em silêncio em torno
de seus pais, para ouvirem uma conversa de que nada entendiam, tinham as fisionomias mais risonhas, e a felicidade
entrava novamente nesta casa com a morte deste homem.
A única emoção causada pelo seu desaparecimento, e que o espectro pôde mostrar, foi uma emoção de alegria.
– Espírito, – disse Scrooge, – fazei-me ver uma cena em que se misture um pouco de doçura ao drama da morte,
do contrário, este quarto escuro que acabamos de ver ficará eternamente gravado na minha lembrança. 
[…]
– Espírito, – disse Scrooge, – alguma coisa me diz, sem que eu saiba como, que a nossa separação se aproxima.
Podereis dizer-me o nome do homem que vimos deitado em seu leito mortuário? […] O fantasma indicava sempre a mesma direção.
Scrooge foi ter com ele, e, perguntando a si mesmo onde poderia estar o seu próprio futuro, acompanhou o fantasma até o momento em que chegaram a uma grade de ferro, diante da qual se detiveram antes de entrar. Era um cemitério. Ali, sem nenhuma dúvida, embaixo da terra, estaria aquele infeliz cujo nome lhe restava saber.

Que lugar pavoroso! Apertado entre capelas; cheio de sepulturas, invadido pelas ervas daninhas... Oh, sim... Triste lugar!
Em pé no meio dos túmulos, o espírito designava-lhe um túmulo. Scrooge caminhou para ali a tremer. Embora o aspecto do fantasma não tivesse mudado, Scrooge receava ver, em sua forma espectral, uma nova e
terrível significação.
– Antes de aproximar-me desta pedra que me apontais, – disse ele, – respondei, Espírito, à minha pergunta: Estas
imagens representam o que deve ou o que poderia acontecer?
O fantasma continuava a indicar o túmulo perto do qual se achava.
–A conduta de um homem pode fazer prever o seu fim, – disse Scrooge, – mas se ele muda de vida, também o
seu fim não será modificado? Dizei-me se assim é que devo entender tudo o que me tendes mostrado.
O espírito continuou imóvel.
Então, continuando a tremer, Scrooge inclinou-se para diante. Guiado pelo dedo sempre estendido do fantasma,
leu sobre a lápide desta sepultura abandonada o seu próprio nome: Ebenezer Scrooge.
– Então, era eu o homem estendido sobre o leito?
O dedo que apontava a inscrição dirigiu-se para Scrooge, depois voltou ao túmulo.
– Não, não, Espírito! Por piedade! Isso não!...
O dedo continuou imóvel.
– Espírito, exclamou Scrooge, agarrando-se ao seu manto, ouvi-me! Não sou mais o homem que fui. Já não serei
o homem que teria sido sem a vossa intervenção. Por que mostrar-me todas estas coisas, se toda esperança está
perdida para mim?
Pela primeira vez a mão pareceu estremecer.
– Bom Espírito, – prosseguiu, prostrando-se por terra diante dele, eu sei que no fundo de vós mesmo tendes
compaixão de mim. Dizei-me que, reformando minha vida, poderei transformar estas imagens que me mostrastes.
A mão pareceu ter um gesto de benevolência.
– Honrarei o Natal com todas as veras de minha alma e prometo guardar o vosso espírito durante todo o ano.
Viverei no presente, no passado e no futuro. A lembrança dos três Espíritos do Natal me ajudará a transformar-me, Charles Dickens 32
e eu jamais serei surdo às lições que me ensinaram. Oh! dizei-me que posso apagar o nome escrito sobre esta lápide!

Em sua angústia, Scrooge tomou a mão do espectro. Este tentou desvencilhar-se, mas Scrooge a reteve com uma pressão de súplica. Mais forte que ele, porém, o fantasma o repeliu. Então, como Scrooge erguesse as mãos numa suprema prece, viu que uma alteração se estava produzindo na forma do fantasma, que se retraiu, diminuiu, e finalmente se transformou numa das colunas da cama. 

****

Epílogo 

Era de fato uma das colunas da cama. E esta cama era a sua, e o quarto era o seu quarto! E melhor ainda: Scrooge dispunha de tempo para reparar seus erros e mudar de vida.
– Quero viver no passado, no presente e no futuro, – repetiu Scrooge, saltando do leito. – A lembrança dos três espíritos virá em meu auxílio para tanto. Oh! Jacob Marley! Benditos sejam o céu e a festa de Natal! E eu o digo de joelhos, velho Jacob, de joelhos!
Scrooge estava agitado e tão entusiasmado com as suas boas resoluções, que sua voz tremia. Durante a sua luta com o espírito, havia soluçado violentamente e seu rosto estava inundado de lágrimas.
– Não foram arrancadas, – exclamou Scrooge, abraçando uma das cortinas de seu leito, não foram arrancadas nem as cortinas nem os laços. Está tudo aqui. E eu também estou aqui. O futuro, cujas sombras me foram mostradas, ainda pode ser conjurado. E o será, estou absolutamente certo disso!
Durante este tempo, suas mãos não cessavam de virar e revirar suas roupas, que vestia pelo avesso, que esticava e fazia quase romper as costuras ou deixava cair no chão, praticando assim toda espécie de desajeitamentos.
– Já não sei onde estou nem o que faço, – exclamava ele chorando e rindo ao mesmo tempo. Sinto-me leve como uma pluma, feliz como um rei, alegre como um canário, estouvado como um homem que bebeu demais. Boas festas a todos! Um feliz ano a todos!
Scrooge havia saltado para a sala, e aí parou já quase sem alento. Ah! ah! ah!
Efetivamente, para um homem que estava desabituado a rir, havia tantos anos, Scrooge tinha um gargalhar sonoro, um gargalhar soberbo, uma risada que prometia uma longa, uma extensa linhagem de sonoras risadas futuras.
– Já não sei em que mês estamos, – disse Scrooge, – nem sei quanto tempo passei com os espíritos. Já não sei mais nada. Estou como uma criancinha. Tanto pior, pouco importa! Eu gostaria mesmo de ser uma criancinha.
Quero ver gente! Venham todos, venham! Interromperam-no em seus transportes de alegria os carrilhões das igrejas, que lançavam a todos os ventos as suas vozes mais alegres:
Ding, ding, dong, boum! ding, ding, dong, boum!
– Senhor, que belos, que maravilhosos carrilhões!
Correndo para a janela, abriu-a e pôs o rosto para fora. Nem bruma, nem granizo. Era um belo dia claro, com um frio vivo e revigorante, um frio que fazia correr o sangue nas veias. Era um sol dourado e flamante, um céu de pureza divina, um ar de esplêndida limpidez, onde revoavam vozes alegres de sinos festivos.
– Senhor, que bela, que maravilhosa manhã!
– Em que dia estamos hoje? – perguntou Scrooge a um rapazinho bem vestido, que passava sob suas janelas.
– Como? – disse o menino interrogado.
– Em que dia estamos hoje? – repetiu Scrooge.
– Hoje? – repetiu o menino. Mas é dia de Natal!
– É dia de Natal? – disse Scrooge consigo mesmo. Assim pois, ainda o alcanço! Os espíritos fizeram tudo em
uma só noite. Naturalmente, podem fazer tudo que querem. Não há nada de extraordinário nisso. Muito bem, meu
homenzinho!
– Como diz? – fez o menino.
– Sabe onde é a loja do vendedor de aves, na esquina da segunda rua depois desta? – perguntou Scrooge.
– Parece-me que a conheço!
– Você é um rapaz inteligente! – disse Scrooge, um rapaz absolutamente notável! Será que você poderia informar-me
se a perua que estava para vender ontem ainda não foi vendida? Não a pequena, mas a maior.
– Uma que era tão grande como eu?
– Que maravilhoso menino! – exclamou Scrooge extasiado. – A gente sente um verdadeiro prazer em conversar
com ele. É isso mesmo, meu rapaz! É isso mesmo!
– Ainda não foi vendida, – disse o menino.
– Sim?! Muito bem: então vá correndo buscá-la para mim.
– Brincalhão! – exclamou o garoto. Canção de Natal 33
– Não, não é brincadeira! – disse Scrooge. Vá encomendá-la e diga que me tragam aqui, para eu determinar o lugar onde deve ser entregue. Venha com o empregado, e eu lhe darei um xelim, se voltar dentro de cinco minutos,
ganhará uma coroa.
O garoto saiu como uma flecha. Efetivamente, um atirador que já não estivesse com o dedo no gatilho de seu fuzil, não teria dado o tiro com maior rapidez.
– Vou mandá-la a Bob Cratchit, – pensou Scrooge esfregando as mãos e desatando a rir. – Ele não saberá de onde veio esta perua, duas vezes mais gorda que Tinzinho. Será uma esplêndida brincadeira! Sua mão tremia imperceptivelmente enquanto traçava o endereço, mas conseguiu fazê-lo, após o que desceu para abrir a porta e receber o empregado da casa de aves. Enquanto o esperava, seu olhar incidiu sobre a aldrava da porta.
– Esta aldrava será de minha estimação até o meu último dia, – exclamou Scrooge, acariciando-a ternamente. – Que boa aparência! Que bela expressão! É de fato uma aldrava admirável! Mas eis que chega a perua. Bravo! Hurra! Bom dia, amigo, Feliz Natal! […]
Com as mãos atrás das costas, Scrooge via cada um dos transeuntes com os lábios desabrochados em sorriso. Seu ar era tão alegre, tão irresistivelmente amável, que dois ou três rapazes lhe atiraram, ao passar, um “Bom dia, senhor! Feliz Natal!”. E pelo correr do tempo adiante, Scrooge declarou e repetia com freqüência, que de todas as palavras agradáveis que ouvira, nenhuma fora tão agradável de ouvir como aquelas. Ainda não tinha andado muito, quando viu, caminhando em sentido contrário, o cavalheiro imponente, que no dia anterior tinha vindo ao seu escritório dizendo: “Scrooge & Marley, se não me engano?”. A idéia do olhar que aquele cavalheiro faria pairar sobre ele, quando o visse, comprimiu-lhe o coração. Ele, porém, conhecia qual a rua que o cavalheiro ia tomar e adiantou-se para ela rapidamente.
– Meu caro senhor – disse ele, abordando alegremente o cavalheiro e apertando-lhe cordialmente as duas mãos –
, como vai? Espero que a sua coleta de ontem tenha sido boa. Bela obra a sua! Desejo-lhe um feliz Natal, cavalheiro!

– É o senhor Scrooge?
– Perfeitamente, senhor. Receio que meu nome não lhe seja bastante simpático. Permita-me que lhe apresente minhas escusas, e queira ter a bondade...
Aqui, Scrooge segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido.
– Jesus! – exclamou o velho cavalheiro, quase sufocado. – Meu caro senhor Scrooge, está falando sério?
– Peço-lhe que aceite, – disse Scrooge –, nem um centavo a menos. Não faço mais que pagar velhas dívidas atrasadas.
Quer fazer-me este favor?
– Meu caro senhor, – disse-lhe o outro apertando-lhe a mão, estou petrificado diante de tal generosi...
– Não falemos mais nisso, por obséquio, interrompeu Scrooge, e venha procurar-me em minha casa. Virá?
– Oh, não faltarei! – exclamou o velho senhor, com uma expressão que denotava a firme resolução de o fazer.
– Agradeço, senhor, fico-lhe muito obrigado, mil vezes grato! Que Deus o abençoe!
Saindo dali, Scrooge dirigiu-se para a igreja, saindo, após o ofício, para passear pelas ruas, contemplando os
transeuntes que iam e vinham atarefadamente, dando tapinhas amáveis nas faces das crianças, interrogando os
mendigos, interessando-se pelo que se passava nas cozinhas, no subsolo, olhando pelas janelas das casas e notando
que tudo isso lhe agradava e divertia.
Jamais teria imaginado que um simples passeio pudesse proporcionar-lhe tão grande satisfação.
A tarde, Scrooge dirigiu-se para casa de seu sobrinho. Antes de subir os degraus da escada, passou por diante da
casa uma dezena de vezes.
Finalmente, cheio de coragem, avançou para a porta e bateu resolutamente.
– O patrão está em casa, minha filha? – perguntou à criada. (Gentil esta menina, sim senhor!)
– Está, cavalheiro. Charles Dickens 34
– E onde está ele, minha bela menina?
– Na sala de jantar, com a senhora. Se o cavalheiro quiser subir ao salão...
– Obrigado, eu sou da família, – disse Scrooge, já com a mão na maçaneta da porta da sala de jantar. Vou entrar,
minha menina.
Scrooge virou brandamente a maçaneta e passou a cabeça pela porta entreaberta. Em pé diante da mesa, o sobrinho
e a sobrinha passavam em revista os talheres arrumados elegantemente para uma recepção, porque os jovens
recém-casados davam grande importância a estes pormenores e queriam certificar-se de que nada faltava.
– Fred! – chamou Scrooge.
Céus! Como sua sobrinha ficou sobressaltada!
Scrooge já se esquecera das palavras que lhe ouvira quando ela estava sentada ao canto da sala com outras senhoras.
Se lembrava, perdoara-as.
– Meu Deus! – exclamou Fred, quem é que vejo?!
– Sou eu, teu tio Scrooge, que vem almoçar. Posso entrar, Fred?
Se podia entrar? Pois pouco faltou para que o sobrinho não lhe arrancasse o braço com um aperto de mão!
Não se poderia imaginar mais cordial acolhimento. Em cinco minutos, Scrooge estava como em sua própria casa.
A sobrinha imitou o sobrinho, e Topper fez o mesmo, e assim fizeram a irmãzinha rechonchuda e todos os demais
convidados, quando chegaram.
Oh, noite deliciosa, deliciosos jogos e divertimentos, amabilíssima companhia! Oh, maravilhoso sentimento de
felicidade!
No dia seguinte, Scrooge dirigiu-se logo pela manhã para o escritório, pois se lhe meteu na cabeça ser o primeiro
a chegar e pegar Bob Cratchit em flagrante delito de atraso.
E foi o que aconteceu. O relógio bateu as nove, e nada de Bob. Bateu as nove e um quarto, e nada de Bob, que,
finalmente, chegou dezoito minutos e meio depois da hora.
A porta fora deixada aberta por Scrooge, que queria vê-lo entrar no cubículo. Antes de entrar, Bob tirou o chapéu
e o cachecol, e em menos de dois segundos estava sentado em seu mocho, fazendo deslizar a pena com extrema
rapidez, como se quisesse recuperar o tempo perdido.
– Diga-me lá, – grunhiu Scrooge no seu tom de voz de antes, tão bem quanto lhe foi possível imitar –, como se
atreve a chegar com semelhante atraso?
– Estou muito penalizado, senhor, – disse Bob –, cheguei um tanto atrasado.
– Um tanto atrasado? – repetiu Scrooge, acredito! –Venha aqui, faça o favor!
– Isso não acontece mais que uma vez por ano, senhor, – alegou Bob pondo a cabeça fora do seu cubículo. – Garanto
que isso não acontecerá mais. Ontem me diverti um pouco...
– Muito bem, meu amigo! Vou dizer-lhe o seguinte: – Semelhante estado de coisas não pode continuar por mais
tempo! Assim, – prosseguiu Scrooge–, saltando da cadeira abaixo e assentando nas costas de Bob uma tal palmada,
que este recuou cambaleando até a entrada do cubículo, assim... a partir de hoje os seus vencimentos serão aumentados.
Bob, a tremer, lançou um olhar para a régua metálica, e por um instante teve a idéia de dar em Scrooge uma
tremenda pancada, de imobilizá-lo, e em seguida chamar em seu auxilio as pessoas do prédio para vestir-lhe a camisa-de-força.
– Um feliz Natal, Bob, – continuou Scrooge com tal seriedade, que não era mais possível haver engano. – Um melhor Natal e mais belo, meu rapaz, que todos aqueles que há tantos anos você tem passado sob meu jugo. Vou aumentar seus vencimentos e farei todo o esforço para ajudar a sua laboriosa família. Vamos conversar sobre os seus negócios esta tarde mesmo, diante de um copo de ponche fumegante, que beberemos em honra do Natal, Bob! E agora, antes mesmo de começar a trabalhar, acenda o fogo e vá buscar-me outra lata de carvão, Bob Cratchit! Scrooge cumpriu a palavra, e foi ainda muito além. Fez tudo quanto havia resolvido fazer e ainda muito mais. Com referência ao pequeno Tini – que não morreu –, Scrooge foi para ele verdadeiramente um segundo pai. Em breve, tinha-se tornado o melhor amigo, o melhor patrão, o melhor homem que jamais se encontrou em nossa velha cidade ou em qualquer outra velha cidade, aldeia ou
povoação do nosso velho mundo.
Alguns riram da mudança operada nele, mas ele os deixou rir e não se incomodou. Scrooge era bastante inteligente para compreender que nada de bom se passa em nosso planeta que não comece por provocar a hilaridade de certas pessoas. E como estas pessoas são destinadas a continuarem cegas, a Scrooge tanto fazia que elas manifestassem seus sentimentos por uma gargalhada ou por uma careta. Seu próprio coração estava alegre e feliz, e isso lhe bastava. Ele não teve mais relações com os espíritos, mas
manteve a melhor das relações com os seus semelhantes, e diziam mesmo que não havia nenhuma pessoa que festejasse
com mais entusiasmo as festas de Natal.
Que todos possam dizer de nós a mesma coisa, com a mesma sinceridade. E para terminar, vamos repetir com o
pequeno Tim: – Que Deus abençoe a cada um de nós.
FIM 

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