"A chegada" e o amor fati de Nietzsche

Por Iago Ramon Möller

Recentemente, tive o prazer de reassistir "A chegada", que está disponível na Netflix e concorreu em várias categorias do Oscar. Somente nesta segunda vez, percebi relações do filme com um conceito de Nietzsche.



Antes de mais nada, aviso que, sim, há spoilers. Discutir as ligações entre “A chegada” e Nietzsche exige que falemos do desfecho da narrativa. A partir daqui, é por sua conta e risco.

Em “A chegada”, a Dra. Louise Banks tenta se comunicar com dois dos alienígenas (denominados heptapods) que pousaram suas naves em vários lugares do mundo.

Ao experimentar a linguagem escrita, a Dra. é respondida pelos heptapods com logogramas, símbolos círculares que expressam uma linguagem não-linear, sem começo nem fim.


Se você conhece um pouquinho de Nietzsche (mesmo tão pouco quanto eu) já deve ter sacado onde quero chegar. Nem começo nem fim, símbolos circulares… Sim, o ouroboros.


O ouroboros é um símbolo bastante antigo que consiste em uma serpente (ou dragão) que devora a própria cauda. Em algumas culturas, era uma referência à criação do universo, à natureza cíclica.

Abro parênteses: talvez você o conheça de FullMetal Alchemist. Uma ideia central do anime é, justamente, a lei da troca equivalente: ideia de que, na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.


Não por acaso, Nietzsche se apropriou do ouroboros para ilustrar sua ideia de “eterno retorno”.

O argumento de Nietzsche para o eterno retorno é bastante simples. Se a quantidade de matéria ou energia no universo é finita, então há um número finito de formas em que as coisas no universo podem ser arranjadas. Qualquer um destes estados constituirá o equilíbrio, caso em que o universo deixará de mudar, ou a mudança é constante e sem fim. O tempo é infinito, tanto para a frente e para trás. Portanto, se o universo fosse entrar estado de equilíbrio, teria feito, uma vez que em uma quantidade infinita de tempo todas as possibilidades já teriam ocorrido. Desde que claramente ainda não atingiu um estado permanentemente estável, ele nunca alcançará. Portanto, o universo é dinâmico, infinitamente passando por uma sucessão de arranjos diferentes. Mas uma vez que há um finito (embora incrivelmente grande) número destes, devem se repetir a cada tantas vezes, separados por vastas eras de tempo. Além disso, eles já devem ter surgido um número infinito de vezes no passado, e irão fazê-lo novamente um número infinito de vezes no futuro. Consequentemente, cada um de nós vai viver esta vida de novo, exatamente como estamos vivendo agora. (Fonte)
 
O mais importante, porém, é o que o filósofo escreveu em “A Gaia Ciência” (você encontrará esse trecho citado em qualquer artigo sobre “eterno retorno”).

“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência — e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!”. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?”

Esse trecho é o “x” da questão. Ele que me faz acreditar que os símbolos e a trama tem uma ligação proposital com Nietzsche. Afinal, se prestarmos atenção, a pergunta-chave do filme não tem a ver com invasões alienígenas.

Levando a hipótese de Sapir-Whorf às últimas consequências, a narrativa nos coloca que a linguagem dos alienígenas permitia à doutora uma nova relação com o tempo, ganhando a capacidade de prever o futuro.

Mais do que isso: ela prevê o seu próprio futuro, no qual se casará e dará à luz uma filha. Seu marido, porém, a abandonará. A filha, por sua vez, falecerá por conta de uma doença rara. Sem dúvidas, um destino trágico.


O inesperado é que o filme não termina com a possibilidade de uma mudança desse futuro, mas com a doutora dizendo: “Apesar de conhecer a jornada e aonde ela leva, eu a acolho. E saúdo cada momento dela.”

E aí entra um terceiro conceito ligado ao ouroboros e ao eterno retorno: o “amor fati”, amor ao destino. Em Ecce Homo, Nietzsche escreve:

Minha fórmula para a grandeza humana é amor fati: que alguém não queira ter nada diferente, nem para a frente, nem para trás, nem para toda a eternidade. Não meramente suportar o necessário, muito menos escondê-lo — todo idealismo é uma mentira ante o necessário — mas amá-lo.

O site “Razão Inadequada” explica essa ideia de maneira bastante bela:

Se não existe nada além desta existência, há de se concluir que apenas ela merece nosso amor. Aprender a amar nosso destino, encontrar beleza no necessário, esta é a grande lição de Nietzsche já no fim de sua produção intelectual. Este talvez este seja seu último grande ensinamento, aquele que o filósofo levou mais anos para interiorizar: dizer sim à vida, porque só ela existe e somente ela carrega valor em si mesma. Afirmar a realidade e viver em sintonia consigo mesmo. Contribuir assim para que tudo se torne mais belo, mais forte, mais potente. (Fonte)

A postura da Dra. Banks frente ao próprio destino me parece, portanto, uma representação do “amor fati”. O desfecho catártico, por sua vez, nos leva a questionar o que faríamos em seu lugar.

Se você pudesse enxergar seu futuro, com todas as dores e alegrias, o abraçaria?

A cereja do bolo é perceber que a narrativa é tão circular quanto a linguagem dos heptapods. Citando uma resenha no Galoá Jornal, “o filme desafia a linearidade do tempo. O começo e o final da história estão ligados e completam um círculo”. (Fonte)

Defendo, então, que “A chegada” é uma excelente obra não apenas por suas atuações, fotografia e ritmo, mas também por essa camada mais profunda de significado.

Assistam. É 10/10.

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