Dickens e o Natal nosso de cada dia


Falta menos de um mês para o Natal! Na rua, vitrines enfeitadas de verde, vermelho e dourado. Nas casas, guirlandas e pinheiros adornam entradas e salas! Quem ainda não comprou, pensa no melhor dia para ir às compras, e as crianças anseiam pelos prometidos presentes em seus elegantes pacotes cintilantes. Em meio a essa tradição que parece se renovar a cada ano, recentemente fui impelida a fazer uma reflexão. Tudo começou há alguns dias, quando um senhor puxou papo na fila do supermercado; enquanto fitava um papai Noel que pendia sobre o caixa, ele dizia o seguinte: é uma pena que as pessoas já não liguem mais pro Natal. Que toque o primeiro sininho quem ainda não escutou esse pequeno, mas sincero discurso. Eu já ouvi algumas vezes, mas foi esse último que me levou a pensar que, para além de toda a parafernália  arranjada para a data, há algo muito importante esquecido. O Natal, segundo o calendário cristão, é a celebração do nascimento daquele que veio ao mundo para lembrar a importância de sentimentos e ações grandiosos, tais como o amor, a compaixão, a caridade e o perdão. No entanto, não raro, quando o Natal se aproxima, nos preocupamos em arranjar pinheiros maiores do que nós mesmos, em comprar ou receber os presentes cobiçados, em apresentar uma ceia apetitosa e mostrar a fachada mais vibrante da rua, quiçá, do bairro... são tão numerosas e importantes as nossas preocupações nesse curto espaço de tempo dividido entre trabalho, estudos, família, compras e preparativos para a data, que parar para refletir sobre o tal espírito natalino parece mesmo perda de tempo.

Poderíamos dizer que tudo isso não passa do resultado da vida agitada que levamos no século 21, não é mesmo? Não exatamente! Charles Dickens, com caneta tinteiro em punho, há quase dois séculos, já tratava sob um viés um pouco diferente, mas a respeito do mesmo assunto. A história foi escrita no século 19, no entanto poderia ter sido em 2016, dada a sua atemporalidade. Mais precisamente em 1843, o escritor britânico escrevia A Christmas Carol (Um Conto de Natal, no Brasil), uma história que trata justamente da perda do espírito natalino. Os meios que levam a essa perda são de naturezas diferentes naquele tempo e atualmente, mas é mérito da Literatura ilustrar a permanência das mazelas existenciais humanas. Aquilo que tratamos aqui por “perda do espírito natalino”, poderia ser tratado simplesmente como avareza, falta de amor ao próximo, compaixão e solidariedade. Dickens usou uma data emblemática como o Natal de maneira a denunciar a sociedade inglesa da época. Naquele tempo, a Inglaterra constituía a maior potência capitalista mundial e em Londres, multiplicavam-se famílias em situação de miséria. O conto descreve o ponto de vista do narrador sobre como os mais abastados tratavam as pessoas nessas situações, mas mostra também, a possibilidade de redenção, até mesmo nos piores casos. 



A história é sobre o avarento Mr. Scrooge, que na véspera natalina é surpreendido por fantasmas vindos com a intenção de fazê-lo refletir sobre a vida mesquinha que levara até o momento. Scrooge considerava justo, por exemplo, negar carvão para que seu pobre empregado se aquecesse na gélida sala onde trabalhava. Justo, uma vez que quem detinha o poder e o dinheiro, era Scrooge, um escolhido de Deus, da mesma forma que seu “inútil empregado”, fora escolhido para levar uma vida de pobreza e sofrimento. São três os fantasmas que aparecem para mostrar ao protagonista, quão errônea tem sido a sua existência: um é o fantasma do passado, outro, o do presente e o terceiro, do futuro. Mas nenhum me parece tão significativo quanto o primeiro. O fantasma do passado leva o homem para uma viagem no tempo em que ele não tinha nenhum dinheiro e era funcionário de uma loja parecida com a que possui no presente, mas onde todos os empregados eram rapazes e moças alegres, que depois do expediente eram convidados pelo dono do comércio a arredar os móveis e dançar livremente até que sentissem seus pés cansados. Ao ser indagado pelo fantasma sobre por que ele parecia tão feliz com algo tão simples e barato, Mr. Scrooge se precipitou em responder que não se tratava de algo simples, que o senhor que os empregava tinha o poder de fazê-los felizes ou infelizes manifestando-se por palavras, gestos ou olhares, e que o que ele os proporcionava era tão grande como se custasse uma fortuna. E com essas palavras, saídas automaticamente de sua própria boca, ele percebe que a avareza com que lidava com todos à sua volta havia dominado sua essência, e que por isso, ele deixara de permitir-se manifestar os mais simples e banais gestos de amor para aqueles com quem vivia.
 O que aconteceu durante a vida do velho Mr. Scrooge, foi que ele se transformou em um simples guardião de suas posses, e nada poderia ser mais importante do que mantê-las. Por isso, gestos ingênuos e nobres que ele cultivava na juventude, como conversar despreocupadamente com qualquer pessoa, oferecer algo em ajuda a alguém necessitado ou simplesmente ouvir e deixar-se ser ouvido, tornaram-se gestos impraticáveis em sua velhice. Pensando bem, o que os fantasmas do Mr. Scrooge mostram talvez não seja muito diferente daquilo que ouvi daquele senhor na fila do mercado. Não se trata da perda do espírito natalino, trata-se da perda do amor ao próximo. E quando se perde a capacidade de amar ao próximo, no fundo, perde-se também o amor por si próprio, como mostrou o personagem de Dickens, que deixou de se preocupar até com a sua própria alegria e com seus prazeres, abandonando a maneira pura e alegre de falar e de agir de quando era menino. Assim chega ao fim a reflexão que esse Natal me trouxe, e concluindo, me atrevo a parafrasear Coríntios, não com o mesmo talento que empregaram Camões e Renato, mas com uma intenção das mais nobres: Que nesse Natal, e para sempre, permaneçamos olhando o outro face a face, e não através de espelhos, em enigma, e que desejemos conhecer o outro e nos deixar conhecer. E que permaneçam a fé, a esperança e o amor, mas que destes três, o maior seja o amor.

Autora: Jéssica Bueno, acadêmica de Letras e bolsista PET Interdisciplinar Feevale.

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