Esse é meu tipo de Eric Gill

Por Quenã Pavéglio

    Arthur Eric Rowton Gill, nascido em Brighton no dia 2 de Fevereiro de 1882, foi um dos mais importantes tipógrafos do século XX, conhecido por revolucionar o mundo da tipografia com sua fonte sans serif “Gill Sans” e pelo seu histórico de abusos sexuais. Além de ter se dedicado a tipografia, escultura, ilustração e a gravura, também atuou como escritor em peças de teatro. Filho de um pastor e de uma cantora lírica, Eric Gill era o segundo mais velho entre 13 irmãos, e não foi o único a seguir na área de artes e design, já que seu irmão mais velho Max Gill também atuou na área do Design Gráfico projetando mapas; porém, Gill foi o que mais se destacou na indústria.

    Gill começou seus estudos aos 17 anos na instituição de arte da cidade de Chichester na Inglaterra. Lá estudava sobre diferentes tipos de trabalhos envolvendo arte manual, e frequentou o espaço até se mudar com a família para Londres. Em Londres, Gill foi em busca de uma especialização em arquitetura que estava sendo ministrada por um dos arquitetos mais renomados da época, William Douglas, mas não demorou muito para que Gill percebesse que seu ponto forte na arte não era na área de construção de plantas e casas. Frustrado com sua formação, começou a frequentar aulas noturnas como pedreiro e escultor no Instituto Técnico de Westminster (cidade onde morava), e de caligrafia onde estudou com o tipógrafo e calígrafo Edward Johnston na Escola de Artes e ofícios. Johnston também foi um dos tipógrafos pioneiros na criação de tipografias sem serifa.

“Madonna And Child”
    Em 1903, Eric, após conviver em inúmeras aulas com Edward Johston, desistiu de vez de sua formação em arquitetura para se tornar um calígrafo, lapidador e escultor monumental. No mesmo ano, conheceu Ethel Hestel Moore, sua futura esposa a qual lhe daria 3 filhas e um filho adotivo. Três anos depois, de ter suas filhas nascidas, concluiu seus estudos e mudou-se para uma casa maior em Sopers’, uma vila de Ditchling em Sussex, onde começou a fazer seus primeiros trabalhos como escultor. Eric passou esculpir lápides para o cemitério local da cidade, cujo o trabalho logo começou a chamar a atenção dos moradores locais. Uma de suas primeiras obras mais conhecidas da época foi a escultura em Pedra “Madonna And Child”.

    Após reconhecimento por esta e outras esculturas que passaram a ser encomendadas por moradores da cidade e de outras localidades próximas, Eric que era anglicano, renunciou a Igreja Anglicana e se converteu ao catolicismo, ocasião na qual foi chamado para produzir esculturas em pedra das 14 Estações da Cruz. Este foi um de seus primeiros grandes trabalhos, encomendado pela Catedral de Westminster que envolvia esculpir tipografia.



    Eric levou 4 anos para finalizar todas as 14 peças, que foram penduradas nos pilares internos da catedral. Mais tarde, a igreja resolveu colorir a tipografia de Gill em vermelho e pintar as aureolas dos santos em dourado, pois sua obra representava uma frieza fora do conceito das 14 estações da cruz. Este fato que o deixou extremamente irritado, já que esculpiu a tipografia de forma precisa e calculista, deixando-a com profundidade o suficiente para a luz bater na obra e projetar uma sombra nítida de ser vista e lida de longe.



‘Boneca de Madeira’ 
    Ao contrário do que pensavam, Eric não utilizava apenas pedra calcárea branca como matéria prima em suas esculturas, ele também era ótimo em esculpir em madeira. Uma de suas primeiras obras em madeira foi a ‘Boneca de Madeira’ que deu para sua filha Joanna de presente de aniversário.

    Eric gravava fontes em pedras desde cedo e trabalhou desenvolvendo lápides para a região onde vivia. Mesmo tendo estudado Tipografia e Caligrafia com Edward Johnston, Eric se aproximou ainda mais do trabalho como tipógrafo após conhecer o famoso Stanley Morrison, o qual anos depois o convidou para ser conselheiro Tipográfico na Empresa Monotype, uma das maiores empresas de produção e impressão de tipos da época.

   Em 1925 trabalhando para a Monotype, Eric começou a trabalhar no seu primeiro alfabeto tipográfico completo. Deste projeto finalizado 4 anos depois, surgiu a tipografia Perpetua. Gill seguiu a tradição da tipografia “Caslon” e “Baskerville” de William Caslon para composição da tipografia Perpetua.

     Na Monotype, Gill havia feito esboços de fontes sem serifas para utilizar em placas de sinalização por volta de 1920. Em torno de 1926, um livreiro chamado Douglas Cleverdon contratou Gill para projetar a fachada de sua loja. Para Gill, uma fonte sem serifa era a escolha mais óbvia para se pintar a fachada da loja de um livreiro progressista, embora na época, a sociedade e a indústria em grande maioria repudiava qualquer tipo de fachada ou peça gráfica que possuísse uma fonte sem serifa, pois a julgavam como uma fonte sem classe, sem acabamento, de péssimo gosto e sem requinte.

     Após ver os esboços de Gill e o resultado da fachada, seu amigo Stanley Morrison encomendou um alfabeto inteiro da Tipografia sem serifa para a Monotype. Para desenvolvê-la por completo, Gill se baseou na tipografia projetada nos metros de Londres, feita pelo seu ex-professor Edward Johnston.

Imagem relacionada
Fachada do livreiro Douglas Cleverdon

    Após finalizada, a Fonte foi lançada em 1928 pela Monotype Corporation, quando Gill estava completando seus 44 anos, a qual a nomeou de tipografia “Gill Sans” (Gill = seu sobrenome / Sans = Sem (que remete a sem serifa)).

    Inicialmente, Gill projetou a fonte para ser apenas maiúscula, mas logo foi encomendado que fizesse variações da mesma em minúsculo, bold e italic. Gill Sans foi bastante aclamada pela sua aparência 100% Britânica, e logo foi adotada pela Igreja Anglicana, pela BBC, pelas primeiras capas de livros da Penguin e pela British Railways (onde foi usada em tudo, cardápios, horários de trêm, etc). Logo a Gill Sans se tornou uma das fontes mais populares na Inglaterra, revolucionando a forma como o mundo via a tipografia na época. A partir da “Gill Sans”, inúmeros tipógrafos começaram a replicar em seu trabalho a tão em alta tipografia sem-serifa, visando alcançar o mesmo sucesso que Gill. Logo a tipografia sem-serifa deixou de ser vista se forma grotesca e passou a ser vislumbrada pelos mais luxuosos pontos que necessitavam se peças gráficas.

Tipografia “Gill Sans” no logotipo da BBC


    Sua fonte Perpetua também teve uma boa recepção assim que se tornou comerciável alguns anos depois, porém, não chegou a causar tanto quando a Gill Sans. A perpetua se encontrou mais presente em pequenos trechos de textos em livros e revistas, e em alguns títulos de livros. Outra de suas fontes mais conhecidas chama-se Joanna, que leva o nome de sua filha mais nova.

    Apesar de seu grande sucesso desenvolvendo famílias inteiras de tipografias, Gill não pensava em si mesmo como um Designer de fontes. Em sua lápide, Eric Gill quis ser designado por stone carver – gravador de lápides. Uma designação que tange as duas atividades que o tornaram famoso: escultor e inventor de letras. Porém, sua fama estava à beira de um colapso, e sua reputação estava prestes a ser manchada para sempre no nome da indústria tipográfica devido a escândalos envolvendo abuso sexual de menores e incapazes.

    Eric Gill faleceu em 1940, no Harefield Hospital, em Middlesex, onde estava internado tratando um câncer de pulmão. Anos após sua morte, seu lado obscuro veio à tona quando a historiadora e biógrafa Fiona MacCarthy lançou uma biografia sobre o artista em 1989, no qual passou semanas nas coleções de Gill que foram enviadas para a Biblioteca Clark, situada em Los Angeles. Lendo seus diários para poder desenvolver seu projeto, ela acabou descobrindo coisas chocantes.

    Em algumas passagens em seus diários pessoais, Gill relatava momentos em que cometeu adultério à Ethel com sua própria Irmã Gladys. Há evidências de que esta relação provavelmente se estendeu ao longo de anos. Havia também indícios de que Eric teve um caso com sua colega de trabalho Beatrice Warde, que foi escritora e estudiosa, e a gerente publicitária da Monotype Corporation. Ela casou-se em 1922, porém sua separação veio quatro anos após, e não se sabe se sua relação com Gill foi o que resultou na separação com seu marido.  É possível que seu caso com Gill tenha também durado anos.


    Mas o adultério não foi nem o começo das barbáries que Eric Gill cometia em sua oficina de trabalho. Gill abusou sexualmente de suas duas filhas mais velhas, Elizabeth e Petra na adolescência. Em seus diários haviam anotações sobre suas relações sexuais com as duas filhas, além de anotações e desenhos do corpo e da parte íntima de ambas. Gill também se baseou nestas relações e anotações para desenvolver inúmeras ilustrações em xilo de suas filhas nuas ou de suas relações sexuais. Porém, não há indícios de que ele tenha abusado sexualmente de sua filha mais nova Joanne, a qual nomeou uma de suas tipografias da Monotype. Além de incestuoso e pedófilo, Eric também era zoofílico, visto que em seus diários haviam relatos de relações sexuais que mantinha com o cachorro da família. Ele também descrevia como eram as relações, e dizia que um homem e seu animal poderiam se tornar um só, como se existisse consentimento do cão em relação ao sexo. ‘Ele era um católico fervoroso com uma sexualidade complicada’ segundo a autora.

    Gill usava uma bata de padre, e por baixo, ficava completamente nu; sua fissura pelo seu órgão genital era tão absurda, que ele fazia diversas ilustrações de seu membro, tirava medidas, e se masturbava com frequência. A quem acredite que a boneca de madeira que Gill fez para sua filha Joanna seja uma réplica do seu pênis esculpido em formato de boneca, justamente por possuir traços semelhantes ao órgão genital masculino.

    Quando estas revelações vieram à tona, houve um enorme impacto na forma como as pessoas viam a arte de Eric Gill, justamente por se tratar de um monstro travestido de humano com uma bata. Quem conhecia Gill no mercado jamais imaginaria que ele era tão perturbado a ponto de “convencer” suas próprias filhas a manter relações sexuais com ele e seu cachorro. Muitos lugares resolveram boicotar suas obras, e locais que utilizavam suas tipografias em sinalização ou layouts começaram a removê-las. A indústria e o público se dividiram, ficando entre pessoas que reconheciam que Eric Gill era um monstro, mas que sua arte era impecável, e os que não o suportavam e não conseguiam separar a arte do artista. Este caso só não levou a extinção de Gill da indústria por que ele já estava morto quando tudo veio à tona.

   Conforme foram passando os anos, as acusações de abuso e assédio começaram a perder a intensidade, e suas obras acabaram voltando a ter valor. Embora ainda existam pessoas que condenam Gill por suas atitudes e o desmereçam como artista, muitos tentam olhar para ele apenas com relevância ao trabalho que desenvolveu em vida. Não dá para ignorar o fato de que ele foi o responsável por revolucionar o mercado tipográfico dando espaço a diversas tipografias sem-serifa graças a criação de sua tipografia “Gill Sans”. Sem sua contribuição, talvez ainda viveríamos em uma era onde utilizar de tipografias não serifadas seria uma vergonha para uma fachada que está a empobrecer uma loja com itens relativamente bons. Gill nos trouxe mais liberdade para se utilizar e criar com tipografias, e por mais que ele tenha sido uma pessoa horrível em sua vida pessoal, fica extremamente difícil de não separarmos a arte do artista que as projetou. 

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