A volta ao ovo e à galinha

Por Iago Ramon Möller

Clarice Lispector, excelente escritora do brasil

Em fevereiro de 1977, Clarice Lispector concedeu à TV Cultura uma entrevista que eternizaria seu semblante blasé no imaginário brasileiro (ainda que as novas gerações talvez a liguem mais aos breves excertos espraidos redes sociais afora, tendência da qual Caio Fernando Abreu e Charles Bukowski também foram vítimas em determinadas épocas). 

Durante a conversa, Júlio Lerner questiona à Clarice se ela se considera uma escritora popular. A autora responde: “Não. Me chamam até de hermética, como eu posso ser popular? [...] Eu me compreendo, de modo que não sou hermética para mim… Bom, tem um conto meu que eu não compreendo muito bem. [...] O ovo e a galinha”. Logo depois, revela que esse é também um de seus “filhos” favoritos, que é um mistério para ela.

O ovo e a galinha, agora publicado também na coletânea Todos os contos (Rocco, 2016, 656 p.), não é um mistério apenas para Clarice. Uma busca na plataforma Google Acadêmico revela aproximadamente 1.530 resultados para o título e o nome da autora. Nessa pesquisa, é possível encontrar debates sobre o estilo, o processo criativo e as questões filosóficas de Clarice. 

Mas se existe esse desejo de superar a barreira hermética de O ovo e a galinha, de onde ele vem? “Quem se aprofunda num ovo, quem vê mais do que a superfície do ovo, está querendo outra coisa: está com fome”. Refletir sobre a natureza do ovo é o caminho, na narrativa, para refletir sobre a natureza de todas as coisas, sobre a relação humana de tudo que cerca a existência. A própria Clarice nos provoca nesse sentido: “Entender é a prova do erro”. E nada é mais humano que isto: a insistência em nos superarmos, em voltarmos sempre aos mesmos temas. A literatura é também isso: tratamentos infindáveis aos mesmos temas na medida em que nos recusamos a esgotá-los. Nesse sentido, em Notas sobre o “O ovo e a galinha”, Mateus Toledo Gonçalves argumenta que “essa repetição extenuante [do substantivo ovo] parece indicar um significado inesgotável, que não encontra termo nunca. O recurso à repetição parece sugerir que a realidade buscada é infindável” (p. 74).

Em Para ser escritor, Charles Kiefer argumenta que “Luigi Pirandello, o autor de Seis personagens em busca de um autor, dedicou-se a vida inteira a pesquisar os principais temas da literatura ocidental ao longo de 2.500 anos. Encontrou cinco” (p. 89). Nada é mais cliché (para seguirmos com os adjetivos franceses) do que questionar a natureza da realidade. Somente um louco, porém, diria que O ovo e a galinha não entrega um tratamento original do tema. 

Um conto… Mas é mesmo um conto? É também um desafio às fronteiras entre o conto, a crônica e o ensaio. Quem é o protagonista? Quem narra? Onde está a trama? É, sobretudo, Literatura - mas suas linhas são marcadas tanto pela linguagem poética quanto pela filosofia.

Difícil iniciar uma reflexão sobre um conto que abre, encerra e reabre suas próprias perguntas o tempo inteiro. O ovo e a galinha é uma serpente que devora a própria cauda. Como explica Mateus Toledo Gonçalves, “O motivo recorrente de um “ovo” que parece estar sempre além de nosso alcance, essa procura infeliz que se reinicia a cada nova frase, aproxima o conto de Clarice ao fardo de Tântalo, condenado pelos deuses a ver eternamente água e alimentos fugirem de suas mãos” (p. 71).

Na entrevista à TV Cultura, Clarice defende que basta um choque inesperado para que a criança, que tem a fantasia solta, se torne um adulto triste e solitário. Talvez “quem veio primeiro?” seja a primeira questão de cunho filosófico que muitas crianças perguntam umas às outras, sempre em tom de brincadeira, com um sorriso no rosto. Mas a maturidade dá um tom tragicômico à pergunta. Não por acaso, ao mesmo tempo em que o conto faz rir enquanto flerta com o nonsense, dói em cada um onde precisa doer. O ovo e a galinha realiza esse feito porque universaliza a questão, possibilitando que ela alcance o trabalho, a felicidade, as relações… E o que mais permitirem as lacunas do texto.

A questão fundamental do conto, por fim, se faz presente também na entrevista. Em determinado momento, Clarice afirma que escreve sem esperança de que suas palavras alterarão a ordem das coisas. Júlio Lerner provoca: “Então por que continuar escrevendo, Clarice?”. Enquanto acende um cigarro, ela responde: “E eu lá sei? Porque, no fundo, a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro”. 

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