“A Fuga”, de Clarice Lispector

Por Gustavo Amaral da Cruz

Clarice Lispector nasceu na Ucrânia em 1920 com o nome de Chaya Pinkhasovna Lispector (em russo, Хая Пинхасовна Лнспектор). Emigrou para o país ainda criança com a família, fugindo da perseguição após a Guerra Civil Russa, em 1922. Naturalizada brasileira, a escritora, que se identificava como “brasileira e pernambucana”, publicou, entre 1940 e 1977, um total de 22 livros, entre contos, romances, crônicas e outros textos em prosa.

O conto A Fuga foi escrito pela autora na década de 1940, sendo publicado apenas postumamente na obra A Bela e a Fera, em 1979, ocupando 23 parágrafos que descrevem, em terceira pessoa, o conflito e a inadequação de uma personagem não nomeada em meio ao cotidiano que à espanta. Lispector escolhe apresentar esse espanto com uma impactante, mas simples, frase de introdução: “Começou a ficar escuro e ela teve medo”. Em seguida, são descritas com detalhes a angústia do momento que a protagonista vivencia e a fria umidade de uma chuva, da qual a personagem não tem intuído de se proteger. Conforme o texto avança, a mulher admira e contempla a decisão de fugir do marido, se vendo cansada da rotina repetitiva e sentindo falta de uma liberdade que há muito não vive, como fica claro em “eu era uma mulher casada e agora sou uma mulher". No fim, porém, a personagem volta atrás, retorna para casa e dorme pensando no barco que a levaria para longe.

A vida de Clarice fora marcada por sua atitude, pensamento e personalidade, que não eram comuns entre mulheres de seu tempo. Inclusive, ela se divorciou do marido em determinado momento da vida e foi uma das primeiras jornalistas brasileiras. Como exalta o biógrafo norte-americano Benjamim Moser, autor da biografia da escritora brasileira, para a revista Língua Portuguesa: “Ela fez coisas que ninguém havia feito. Foi uma das primeiras mulheres a ser jornalista no Brasil. O Brasil tinha metade desse continente e só duas mulheres jornalistas”. O pensamento de Lispector está sempre impresso em sua própria obra, seja em seu jeito de escrever ou em suas palavras – tão necessárias – à frente de sua época.

A Fuga reflete um sentimento que todos aqueles presos à uma rotina, um dia, experimentarão: a vontade da mudança, a quebra com a monotonia e a necessidade de liberdade individual. Esse sentimento, a própria autora teve que enfrentar: passando por cima de superstições e preconceitos da época, foi em busca do que achava melhor para si. Ainda que as mudanças sociais defendida pela escritora andem a passos lentos, todos aqueles que precisarem de sua própria fuga terão um conto com o qual podem se relacionar.


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