"Amor", de Clarice Lispector


Por Angela Litwinczyk Machado

    O conto "Amor", do livro Laços de Família, de Clarice Lispector, são 12 páginas que têm o poder de nos arrancar do mundo material e nos convidam a refletir sobre a essência do que nos rodeia. Mas o que é importante, e que não pode ser esquecido quando contemplamos qualquer obra desta brilhante escritora, é que, mesmo o conto sendo pequeno, é necessário lê-lo minuciosamente, interpretando palavra por palavra e até a pontuação. Muitas das conclusões que tiramos deste texto podem mudar nosso jeito de pensar, agir e ser.
    Apropriando-nos dos contextos que nos cercam, propicia uma reflexão onde muitas de nossas relações estão alicerçadas nas aparências devido às redes sociais. "Amor" nos faz entender que, muitas vezes, a aparência é capaz de enganar a nós mesmos: de tanto mostrar aos outros que somos felizes, passamos a acreditar nisso, quando, na verdade e em essência, não somos.
    O conto tem, como protagonista, Ana, uma mulher de classe média que, assolada pela rotina e pela imposição de sua condição feminina, passa por um doloroso momento de compreender a essência das coisas e de contato consigo mesma. Essa crise se inicia depois de observar um cego mascando chicletes. E, neste momento, deve-se fazer uma pausa para refletir e perguntar: por quê?

"O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada."

    Em primeiro lugar, um homem sem a visão pode nos levar a pensar em alguém desligado do mundo material, alguém que tem acesso ao seu monólogo interior. Ainda, o fato de ele estar mascando chicles com naturalidade provoca em Ana a sensação de que ele é feliz em sua essência. A partir dai, ela passa a se questionar sobre sua vida. Afinal, era ela realmente feliz?

"Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto que esta não explodisse. (...) tudo feito de um modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma visão cheia de naúsea doce, até a boca."

    Ana chega a conclusão de que não. Sua verdadeira essência era uma "íntima desordem" escondida pela "aparência harmoniosa" de sua felicidade.

"Um cego me levou ao pior de mim mesma."

    Entretanto, essa ruptura sofrida pela protagonista não deve ser encarada como algo de todo negativo. Ela é, na verdade, revigoradora na medida em que confronta a realidade com a rotina e com sua condição de mulher em uma sociedade machista. Isso também causa nela um enorme fascínio e perplexidade diante da descoberta de que é livre para fazer as próprias escolhas, livre para não seguir as leis ditadas pela moralidade social.

"E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver."

    A escritora consegue, em poucas páginas escritas, mostrar que, muitas vezes, com a finalidade de proteger, o amor aprisiona; que ele não permite que vivamos perigosamente, que enfrentemos a vida... Vem a reflexão: Será este o amor verdadeiro? Somente ele seria capaz de nos libertar e de conduzir ao autoconhecimento.

"Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver."

    Por fim, pode-se dizer que dimensão social do conto "Amor", de Clarice Lispector, reflete tanto a sociedade patriarcalista dos anos 50 (década em que foi escrito o livro) quanto a de hoje. Nós, mulheres, ainda somos vistas como estereótipos, algo que pode ser empossado e aprisionado. Cabe somente a nós, entretanto, mudar a realidade, e, para isso, devemos, primeiramente, nos autoconhecermos.

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