"O correio feminino", de Clarice Lispector

Por Ailton Siqueira

Incomodado. Foi assim que me senti ao percorrer cada página da obra Correio Feminino, de Clarice Lispector, livro póstumo da escritora. Ler este livro em 2020, ano do centenário de nascimento de Clarice, causa tamanho desconforto por ir de encontro ao que os debates feministas atuais consideram como politicamente correto. 

Contextualizando um pouco a construção do livro, trata-se de um apanhado de artigos escritos por Clarice principalmente entre as décadas de 1950 e 1960, assinados pelos pseudônimos de Helen Palmer, Tereza Quadros e Ilka Soares para os jornais Comício, Correio da Manhã e Diário da Noite. Por questões pessoais (a maior parte delas financeira), Clarice aceitou publicar textos que retratam a mulher da época usando tais pseudônimos, provavelmente para não associarem a escritora às personagens ou por ter sido um dos requisitos da própria equipe dos jornais. 

A obra, organizada pela doutora em Literatura Brasileira Aparecida Maria Nunes, está organizada em cinco capítulos (Um retrato de mulher, Saber viver nos dias que correm, Retoques no destino, Aulas de sedução e Entre mulheres). Tais artigos são de opiniões diversas, porém centradas no universo considerado feminino, e incluem receitas caseiras de beleza, dicas de autoestima, segredos de como atrair e conquistar o homem desejado, dentre outras. 

Os breves textos remontam uma sociedade predominantemente patriarcal, machista, com foco na construção ideal do feminino compulsório (similar aos dias atuais), cuja máxima é a da passividade diante do marido, de estratégias de como agradá-lo e fazê-lo feliz e formada por regras a serem seguidas. Os textos foram escritos para mulheres brancas e ricas, burguesas, cuja rotina diária se passa quase que totalmente em casa, mantendo-a limpa e cheirosa, cuidando dos filhos e de si mesma, com a finalidade de impressionar outras pessoas e de serem desejadas constantemente por seu marido. 

Helen, Teresa e Ilka convergem suas ideias ao sugerir que a mulher ideal seja uma que não coma muito, não reclame das coisas, não fale alto, esteja sempre "maquillada" e que seja discreta (no uso de roupas, maquiagens, no modo de andar e de gesticular...) a ponto de não ser percebida. Do contrário, poderá ser considerada uma mulher vulgar, tipo abominado pelos homens! 

Os homens, geralmente muito discretos, detestam mulheres que se destacam demais, onde quer que apareçam. Não apenas pela sua própria maneira de ser, mas também por uma questão de vaidade masculina, já que não lhes é agradável ficar ofuscados ou relegados a um plano. DISCRIÇÃO (P. 17) 

Estas narrativas estão longe de ser o que acredito que seja a escrita de Clarice, e talvez por isso tanto me incomodou. Embora eu não tenha conhecimentos mais elaborados de seus escritos, o imaginário que concebi buscando sobre sua vida e obra ou ouvindo de outras pessoas me fizeram imaginar uma Clarice com textos mais profundos, muitas vezes depressivos, porém realísticos, emocionalmente próximos à experiência humana e feministas. 

Apesar dessa superficialidade, em alguns textos existe, a meu ver, uma busca por estimular as leitoras a reconhecerem e valorizarem suas qualidades individuais. Em cada pseudônimo, há uma Clarice consciente de seus escritos e que, em algumas circunstâncias, recorre à Simone de Beauvoir ou outras feministas para respingar algumas ideias sobre empoderamento feminino. Logo, me pareceu haver certa ironia nos textos; talvez uma maneira de estimular a leitora da época a refletir sobre a validade de suas atribuições naquela sociedade, ao passo que as prende pelos seus textos curtos e simplificados. 

Mas lembre-se: a imaginação só nos serve quando baseada na realidade. Seu "material de trabalho" é a realidade a respeito de você mesma. ESPELHO MÁGICO (P. 26) 

Ao comparar a sociedade das décadas das publicações dos artigos com as contemporâneas, é notória a diferença na percepção da constituição do feminino e do tornar-se mulher, afinal, são cerca de sessenta anos que separam aqueles artigos dos leitores atuais. Isso é tão verdadeiro que foi inevitável ler Correio Feminino sem me sentir constrangido e irritadiço com a forma que Clarice conduziu a interpretação do ser mulher. No entanto, tais tipos de textos podem estar relacionados ao perfil dos próprios jornais em que foram publicados, e, assim sendo, era previsível que eles fossem dessa maneira escritos. O universo feminino delineado na época nos permite ter um panorama de como a sociedade o pensava e como tais regras eram embutidas nas mulheres, de diferentes maneiras. 

Por fim, confesso que, mesmo incomodado, não consegui parar de ler o livro. Da mesma forma, a cada página virada, eu buscava entender o que poderia ter se passado naquele período para que tais escritos fossem assim concebidos, o que me fez concluir que aquela, definitivamente, não era a Clarice escrevendo, mas, sim, seus pseudônimos ganhando vida. Que alívio! 

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